
No último texto, discutimos o componente principal da economia de jogos: os recursos. Vidas, munição, pontos de cultura, sementes, e muitos outros elementos comuns em jogos físicos e digitais podem ser enxergados como recurso quando estudamos a economia de um jogo.
De um ponto de vista prático, recursos são muito úteis no processo de game design para definir o objetivo do jogo, isto é, como você pode vencer o jogo. Essa atividade é bem direta quando trabalhamos com jogos físicos. Veja o xadrez, por exemplo: o recurso necessário para se vencer no xadrez é o rei adversário (um recurso). No momento em que um jogador captura o rei do outro jogador, o jogo termina. Xeque-mate.
Eu, particularmente, gosto de chamar estes recursos de recursos de vitória ou recursos de progressão. Recurso de vitória é aquele que garante a vitória ao jogador que o obtém, enquanto recursos de progressão são aqueles que conduzem o jogador à vitória. A diferença é sutil e ambos os termos podem ser usados como sinônimos, mas a distinção nos ajuda a estudar jogos diferentes sob uma mesma lente.
No xadrez, por exemplo, para voltar ao exemplo anterior, o rei é um recurso de vitória: ele concebe a vitória ao jogador que o consegue; e não há recursos de progressão claro, visto que a captura do rei pode acontecer a qualquer momento, independente do estado do tabuleiro. Por outro lado, um jogo digital como Super Mario World, não existe um recurso de vitória muito claro, mas há recursos de progressão bem definidos: as fases do jogo. Ao completar as fases do jogo, o jogador libera mais áreas até alcançar o final do jogo e salvar a princesa.
Identificar recursos de vitória ou progressão nos ajuda de várias formas. Primeiro porque nos ajuda a entender quais recursos são mais relevantes de forma imediata ao jogador visto que estes conduzem à vitória. Segundo porque eles no ajudam a estabelecer um objetivo claro para o jogo, uma dificuldade comum nas primeiras etapas de desenvolvimento. Terceiro e não menos importante, porque eles servem como base para a progressão do jogo.
![Diferentes fases do Super Mario World no mapa do jogo. [Fonte: Mario Wiki]](https://static.wixstatic.com/media/0f0a2a_d768e18c16694d78a59eb51e7caddbec~mv2.png/v1/fill/w_318,h_240,al_c,q_85,enc_avif,quality_auto/0f0a2a_d768e18c16694d78a59eb51e7caddbec~mv2.png)
A Jornada como Recurso
Analisar um jogo sob a ótica de coleta de recursos de vitória ou progressão nos permite entendê-los como uma jornada de acumulação. A progressão do jogo, tanto em termos de ritmo como de velocidade são dadas pela acumulação de tais recursos. O ritmo da acumulação dita quanto se acumula por vez, enquanto a velocidade dita quando se acumula. Voltando ao Super Mario World, essa progressão segue algo como 1 fase (ritmo) a cada 3 ou 4 minutos em média (velocidade) - claro, dadas as habilidades do jogador. Tem fase que vai demorar bem mais que 4 minutos para ser concluída.
Controlar o ritmo e a velocidade da progressão nos permite planejar quando e como usar outros recursos, atividades e desafios. Por exemplo, uma nova mecânica pode ser introduzida depois que o jogador alcança uma certa medida de progressão. A cada 10 fases, por exemplo, o jogador pode adquirir um poder novo para explorar novas áreas do jogo.
Nas versões mais modernas do Super Mario, como Super Mario Odyssey, o jogador precisa coletar Power Moons para liberar novas áreas. Assim o jogo garante que o jogador tenha dedicado tempo e vencido desafios o suficiente para se mostrar apto a progredir no jogo.
Por outro lado, jogos com recursos de vitória claros, como o xadrez, costumam ter menos foco na progressão e ter a maior parte de seus recursos, atividades, e desafios disponíveis desde o início do jogo. Isso acontece mais comumente em jogos "de mundo aberto" focados nas habilidades do jogador, como o Elden Ring da From Software ou The Legend of Zelda: Breath of the Wild da Nintendo. De forma diferente, estes jogos podem usar a criatividade e conhecimentos do jogador para permitir uma progressão não-linear, como no Unsighted do estúdio brasileiro Pixel Punk.
![Unsighted. [Fonte: Site Oficial]](https://static.wixstatic.com/media/0f0a2a_edd7badce79740389671c7b9a7ef63da~mv2.png/v1/fill/w_980,h_549,al_c,q_90,usm_0.66_1.00_0.01,enc_avif,quality_auto/0f0a2a_edd7badce79740389671c7b9a7ef63da~mv2.png)
Acumulação e Mensagem
Para além do estudo prático de recursos de um jogo, principalmente em termos de recursos de vitória ou progressão, é importante realizar uma análise das camadas e subtextos por trás destes.
Em termos abstratos, recursos nada mais são do que números que coletamos através de mecânicas e mecanismos, mas eles são integralmente relacionados a outros aspectos mais concretos do jogo, como a narrativa e mensagem do jogo. Voltando ao exemplo do Super Mario Odyssey, as Power Moons são o combustível que nos permite perseguir Bowser, o vilão, e salvar Peach, a donzela em perigo.
Do ponto de vista de game design, as Power Moons proporcionam desafios e treinam o jogador para que suas habilidades estejam minimamente calibradas para a progressão de dificuldade do jogo. Do ponto de vista narrativo, as Power Moons impulsionam a aeronave Odyssey para novos mundos e histórias. Debaixo desta superfície, o acúmulo de Power Moons são as provações de um herói masculino resgatando uma mulher indefesa.
Lógico que o ponto nesta análise não é problematizar os jogos do Super Mario, mas entender o que os recursos de um jogo significam para além dos números. Em geral, jogos de progressão tendem a promover positivamente a acumulação, inclusive, reforçando a ideia liberal de que extração significa progresso e evolução. Nestes jogos, é comum a extração contínua de recursos e suas transformações para conduzir a progressão do jogo, como se a única forma de ser evoluir fosse através da transformação material.
Jogos de exploração e construção, como o querido Terraria, se baseiam neste ciclo de exploração, extração, transformação, progresso. Ao mesmo tempo que é divertido e engajante por sempre apresentar novos desafios ao passo que o jogador constantemente vê-se mais capaz e poderoso, a mensagem oculta é a de que o planeta, seus habitantes e seus recursos, servem apenas para galgar a ascensão do protagonista. Novamente, a ideia aqui não é problematizar o Terraria ou jogos que seguem esse modelo, mas perceber o que estes jogos dizem por trás de suas mecânicas e mecanismos.
Discutir e entender essas mensagens nos ajuda a refletir como usamos recursos em nossos jogos e qual o sentido da progressão destes. Além disso, nos ajuda a perceber quando estamos criando algo novo, com uma mensagem que concordamos, ou quando estamos repetindo mensagens que nos foram ensinadas sem que nos déssemos conta delas.
Mas, e aí, e qual a mensagem do seu jogo? E quais mensagens os seus recursos estão passando? Foi você quem as escolheu ou alguém escolheu por você?
Obrigado pela leitura e nos vemos em breve ;)
Referências: Serpa, Y. R. (2024). The Cores of Game Design: Mechanics, Economics, Narrative, and Aesthetics. CRC Press.
Adams, E., & Dormans, J. (2012). Game Mechanics: Advanced Game Design. New Riders.
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