
Geralmente quando eu falo sobre economia de jogos, eu uso dois termos distintos que são comumente empregados com o mesmo significado: mecânicas e mecanismos. Mecânicas, o tópico número um quando se fala de game design, são as formas de interação entre o jogador e o jogo. Mecanismos, por outro lado, são os elementos da economia que governam os recursos. É possÃvel e comum que mecânicas e mecanismos se manifestem simultaneamente nas mesmas ações de um jogo, mas, como discutimos nos últimos textos, a nossa análise sobre os elementos de um jogo é sempre mais rica quando observada separadamente.
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Neste artigo nós discutimos quais são os quatro mecanismos básicos da economia de jogos e como eles regem a economia, assim como qual a sua relação com as mecânicas do jogo. Para não perder o costume, também discutimos como estes mecanismos e a economia como um todo refletem a mensagem e intenção do jogo, mesmo quando estes entram em contradição com a história apresentada pela narrativa do jogo.
Os Mecanismos
Existem quatro mecanismos fundamentais na modelagem de uma economia de jogos: fontes, drenos, conversões e trocas. Fontes são mecanismos que geram recursos. Drenos, por outro lado, são mecanismos que destroem recursos. Conversões são mecanismos que convertem recursos de um tipo em recursos de outro tipo. Por fim, trocas são mecanismos que trocam a posse de recursos entre as entidades do jogo (em geral, os jogadores).
Fontes e drenos são opostos. Um é responsável pela criação de mais recursos no jogo, aumentando seu número, enquanto o outro é responsável por sua destruição, reduzindo seu número. Usando nosso exemplo de sempre, em Super Mario World, sempre que o jogador inicia uma fase, os mecanismos de fonte da fase criam e posicionam todas as moedas da fase. Essas moedas são criadas "do nada" e sempre estarão lá quando o jogador entrar na fase novamente.
![Moedas em uma fase de Super Mario World. [Fonte: Mario Wiki]](https://static.wixstatic.com/media/0f0a2a_820645491cf8468d88fc633cbaa2fcb9~mv2.png/v1/fill/w_64,h_56,al_c,q_85,usm_0.66_1.00_0.01,blur_2,enc_avif,quality_auto/0f0a2a_820645491cf8468d88fc633cbaa2fcb9~mv2.png)
Quando o Mario perde uma vida, esta vida deixa de existir - ela é drenada. Por mais que seja possÃvel pegar outras vidas no jogo, as vidas perdidas foram destruÃdas permanentemente e não existem mais no jogo. Quem disse que Super Mario não tinha um lado filosófico, né?
Uma das formas de se conseguir uma vida é acumulando 100 moedas. Quando isso ocorre, as 100 moedas são convertidas em uma vida. Nesse processo, o mecanismo de conversão de moedas para vidas é acionado. De certa forma, podemos ver esse processo como uma fonte gerando uma vida e um dreno que destrói as 100 moedas. Na prática, as 100 moedas deixam de existir e uma nova vida é introduzida ao jogo. Alguns jogos permitem a inversão de conversões, por exemplo, convertendo a vida de volta em 100 moedas para que estas possam ser usadas para outros fins.
Note que a conversão de 100 para 1 é caracterÃstica deste mecanismo de conversão e não é uma regra para todas as conversões do jogo. Por exemplo, as 3-Up Moons são luas coletáveis que se convertem em 3 vidas quando coletadas. Conversores, assim como os outros mecanismos, seguem taxas próprias: fontes possuem taxas de produção; drenos possuem taxas de destruição; e, conversores possuem taxas de conversão. No caso de moedas para vidas, a taxa de conversão é de 100 para 1. Quando o Mario cai em um buraco e morre, o dreno possui taxa de destruição de 1 vida por 1 morte.
![3-Up Moon em Super Mario World. [Fonte: WikiBooks]](https://static.wixstatic.com/media/0f0a2a_54227d41fa9a43ec8904f094ce2e77e3~mv2.png/v1/fill/w_64,h_48,al_c,q_85,usm_0.66_1.00_0.01,blur_2,enc_avif,quality_auto/0f0a2a_54227d41fa9a43ec8904f094ce2e77e3~mv2.png)
Conversões e Trocas
Diferente dos outros mecanismos que se manifestam em jogos individuais, os mecanismos de troca são mais evidentes em jogos com múltiplos jogadores. A troca ocorre quando recursos passam a pertencer a jogadores diferentes, mesmo que a troca seja unilateral, por exemplo, quando um jogador cede um recurso para outro sem receber nada em troca.
Trocas são bem evidentes em jogos de RPG massivos, os conhecidos MMORPGs, e também em jogos de arena de batalha, os MOBAs, onde jogadores trocam itens e equipamentos entre si por diversos fins. Note que, diferente da conversão que pode ser enxergada como uma combinação entre fontes e drenos, este não é o caso para trocas. Durante uma conversão, recursos deixam de existir e novos recursos aparecem no jogo. Diferentemente, nas trocas, os mesmos recursos continuam fazendo parte do jogo, mas agora em mãos diferentes.
Eu gosto de evidenciar essa diferença em termos de tipos de equilÃbrio. A conversão conduz a um equilÃbrio na quantidade e diversidades de recursos no jogo, enquanto a troca conduz a um equilÃbrio na possessão de tais recursos. Enquanto um controla quantas moedas e vidas existem no jogo, o outro controla quais jogadores possuem moedas e vidas.
Perceba que, embora eu tenha usado o termo jogadores, um jogador virtual, controlado pelo jogo, pode também participar de uma troca. Isso é muito comum em jogos de RPG de ação, como o Diablo II, onde os mercadores possuem inventório próprio. Nestes casos, a venda e compra de itens se dá através da troca entre itens e moedas de ouros entre as entidades, mesmo que uma delas, o mercador, não seja um jogador e sim uma entidade controlada pelo jogo. Note que este processo é independente da taxa de troca. Geralmente, itens são vendidos por uma taxa de troca diferente de quando eles são comprados. Uma adaga +1 que custa 100 moedas nas mãos do mercador, pode ser vendida por mÃseras 10 moedas quando pertence ao jogador. Nem automóvel tem uma desvalorização tão rápida assim como as trocas em RPGs.
Uma forma de enxergar mecanismos de troca em jogos de um único jogador são baús e outros sistemas de armazenamento separados do jogador. Voltando ao exemplo anterior, em Diablo II, é possÃvel guardar itens em um inventário separado do inventário do personagem. Desta forma, caso o personagem morra em combate e deixe cair seus itens, os itens guardados no baú permanecem seguros e intactos. Esta perspectiva permite a criação de dinâmicas que exploram a posse de recursos de formas mais variadas. A mecânica de derrubar os itens e dinheiro ao morrer, assim como a limitação no espaço fÃsico para o armazenamento de itens são mecânicas comumente empregadas em jogos desse tipo para a enriquecer seus repertórios de situações e desafios.
![Inventório e baú de armazenamento (stash) do Diablo 2. [Fonte: knoll]](https://static.wixstatic.com/media/0f0a2a_d2c182337f834476b88589361631835d~mv2.png/v1/fill/w_78,h_44,al_c,q_85,usm_0.66_1.00_0.01,blur_2,enc_avif,quality_auto/0f0a2a_d2c182337f834476b88589361631835d~mv2.png)
O Dilema do Mercador
Quando eu apresento os mecanismos da economia em sala de aula ou em palestras, a ideia do mercador sempre gera uma certa confusão entre os participantes, principalmente em termos de conversão e troca. Vamos a outro exemplo para entender a confusão: em jogos como Final Fantasy, os mercadores funcionam, em termos de economia, como conversores. Quando o jogador vende um item, este item é convertido em moedas para o jogador e o item deixa de existir. Mesmo que o vendedor venda um item do mesmo tipo, aquele é outro item, gerado pelo mecanismo de conversão do mercador, e não o item originalmente vendido pelo jogador.
Voltando ao exemplo anterior do Diablo II, ao vender um item, o item vendido passar a pertencer ao inventório do vendedor, configurando uma troca. O jogador pode então trocar de volta o mesmo item, mesmo que a taxa de troca mude. Para o jogador, essa diferença é inexistente, desconsiderando a desvalorização abissal que ocorre em ambos os casos, mas para o game designer, essa diferença é uma decisão importante da economia.
Geralmente, após essa discussão e diferenciação entre mercadores conversores e mercadores de troca, a dúvida que aparece é a de qual deles é o melhor. Evidentemente, como em toda ciência não exata, tal qual game design e a economia (polÃtica), não existe reposta simples para uma questão complexa e, em muitos casos, não há nem resposta: não é possÃvel estabelecer uma relação de qualidade (quem é melhor do que quem) de uma forma genérica para qualquer jogo em termos de mercadores conversores e mercadores de troca. A resposta é diferente para cada jogo, para cada contexto e para cada objetivo.
A Economia Expressa Intenções
A economia de um jogo não é algo que surge de forma espontânea e se manifesta entre as linhas da história ou as repetições das mecânicas. A economia é pensada e planejada pelos desenvolvedores, mesmo que estes não usem os jargões do campo ou não se atentem diretamente aos mecanismos. Quando um inimigo é morto e a sua morte é convertida em pontos de experiência que, futuramente, se converterão em mais atributos para o personagem, vários mecanismos são ativados e recursos são transformados. O sistema foi desenhado e implementado para funcionar assim.
Da mesma forma, a decisão entre um mercador conversor e um mercador de troca é uma escolha do desenvolvedor que melhor se adequa à economia do jogo. Talvez, para um jogo, itens sejam elementos descartáveis, sem apego, que são sempre meramente convertidos em moedas de ouro. Diferentemente, para um outro jogo, os jogadores possam se apegar aos seus itens, tendo-os como algo para além de seu valor monetário virtual, que podem ser dados de presente para outros jogadores ou armazenados em lugares especiais.
Perceba que essa decisão é tão relevante quanto as demais no processo de desenvolvimento de uma economia. As taxas dos mecanismos, por exemplo, são elemento essencial para atingir um bom balanceamento para o jogo. Ao mesmo tempo, as mesmas taxas indicam as mensagens, intenções e prioridades do jogo. Quando um jogo concede recursos ao matar personagens em uma taxa mais elevada do que ações não violentas, a mensagem do jogo é uma de que o "progresso" se dá através da violência em maior velocidade do que em ações pacÃficas.
Isso é particularmente curioso de ser analisado em jogos em que a narrativa propõe uma mensagem conflitante aos números da economia. Um meme comum que representa essa discrepância são os jogos da série Batman Arkham, aonde o protagonista, o Batman, se coloca como um bastião da justiça e que quer retomar a paz na cidade de Gotham, mas progride através do uso constante de violência contra capangas que o fornecem recursos (pontos de experiência) para liberar novas mecânicas e melhorias. Ao mesmo tempo em que a mensagem do jogo é uma de "justiça" e combate ao crime sem o assassinato - já que o Batman não mata, essa justiça é fragilmente construÃda a partir da violência desenfreada e assassina que gira as engrenagens da economia convertendo-se em arsenais mais violentos e poderosos. Mesmo que o Batman repita sua promessa de não matar, a economia do jogo só concebe recursos através da "morte" dos inimigos. Tudo bem, o Batman não mata, mas ele quebra todos os ossos, né?
![Em tradução livre: "Matar criminosos"; "Bater neles até que eles desejem estar mortos". [Fonte: Reddit]](https://static.wixstatic.com/media/0f0a2a_d9515659401447bebbe5469690ea9c69~mv2.png/v1/fill/w_49,h_49,al_c,q_85,usm_0.66_1.00_0.01,blur_2,enc_avif,quality_auto/0f0a2a_d9515659401447bebbe5469690ea9c69~mv2.png)
Confesso que eu me diverti muito jogando todos os quatro jogos da série Arkham, mas me incomodava muito ver o "maior detetive do mundo" não perceber que a sua fortuna pode ser a real violência que assola a cidade de Gotham e produz o exército interminável de capangas e vilões. Economia de jogos nem sempre é sobre dinheiro, mas não deu pra escapar dessa vez.
Obrigado pela leitura e nos vemos em breve ;)
Referências: Serpa, Y. R. (2024). The Cores of Game Design: Mechanics, Economics, Narrative, and Aesthetics. CRC Press.
Adams, E., & Dormans, J. (2012). Game Mechanics: Advanced Game Design. New Riders.