Língua é um jogo simples, mas com muito coração. Na jornada de Beto, um menino tímido em busca do seu bode de estimação perdido, o jogador se depara com criaturas, paisagens, objetos e músicas brasileiríssimas. Tudo enquanto assiste a história de um garotinho que se redescobre e encontra a sua própria voz.
Guilherme Giacomini, desenvolvedor e compositor de Língua, é paulista crescido em Salvador e migrou do desenvolvimento de jogos para a produção musical seguindo sua paixão de criança: trabalhar com trilha sonora de videogames. O projeto surgiu como ideia infelizmente atrasada para um edital público, ficou engavetado por um tempo, entre trabalhos que surgiam, e retornou para conseguir entrar num segundo edital.
O desenvolvedor juntou clássicos que marcaram sua infância no Super Nintendo, como Zelda e Chrono Trigger, além de joias atuais tipo Crosscode, com o contexto da caatinga nordestina para criar seu jogo procurando naturalizar os elementos folclóricos brasileiros.
“Eu não vou apresentar esses personagens folclóricos e pegar a mitologia brasileira dessa forma mais educativa, eu vou colocar esses personagens e vou tratar eles como as pessoas tratam os dragões. Ninguém pergunta o que é um dragão, as pessoas só aceitam”, disse Guilherme durante nosso papo no terceiro episódio do Controles Podcast.
Mas o ponto que mais me encantou foi a trilha sonora maravilhosa do jogo. Língua tem baião, forró e arrocha feitos com aquele brilho retrô das músicas dos mesmos clássicos citados acima. O mergulho nesses estilos foi uma verdadeira bateção de cabeça para Guilherme, metaleiro na adolescência, que precisou estudar a fundo os ritmos e contou com ajuda extra na criação do tema central do jogo.
Preocupado com seu forte sotaque paulistano, o desenvolvedor passou muito tempo analisando e reanalisando o projeto para que ele não caísse em uma representação genérica ou generalista do ambiente e temática que queria passar.
“O nordeste é um conjunto muito grande de culturas diferentes, sotaques, arquiteturas. Teve muito cuidado pro Língua não dizer que o nordeste é isso aqui. Não. Não é a caatinga e a cidade do interior, tem cidades enormes e inclusive um dos maiores polos de desenvolvimento de jogos é em Pernambuco”, acrescentou o desenvolvedor.
Além de Guilherme, Língua contou com as artes de Thomas Lessa e Felipe Basou e a programação de Gabriel Mamani. O jogo foi um dos projetos selecionados pelo edital 30/2019 da Proac, Produção e Desenvolvimento de Games, e foi lançado em outubro de 2021.
Ao procurar por seu bode Gaiato, Beto encontra Fulô, criatura protetora dos animais e que precisa de ajuda para recuperar a língua do espírito Bumbá. Fulô é o contrário do protagonista, Fulô é debochada e falastrona, conduzindo toda a história como a Na'vi do nosso herói mudo, porém altruísta e corajoso ("é perigoso ir sozinho, tome esse estilingue").
As duas principais mecânicas de Língua são o estilingue espiritual, que serve tanto para atirar e libertar o espírito dos animais em sofrimento quanto acionar boa parte dos quebra-cabeças do jogo, e o peão, bloqueando projéteis inimigos e sendo capaz de virar peças dos puzzles.
O combate em bullet hell envolve três tipos de inimigos: pássaros, lagartos e tatus, além do chefe que junta tudo em um só lugar. Os pássaros atiram um projétil e te seguem, enquanto os lagartos atiram três projéteis, mas são imóveis e os tatus atiram e são super ágeis, perseguindo e dando muito dano.
O jogo tem excelentes quebra-cabeças envolvendo salas inteiras de interruptores e pedras para você empurrar e a progressão de dificuldade e complexidade desses puzzles é bem satisfatória, não chegando a apresentar enigmas extremamente difíceis mesmo para mim, que não sou o maior solucionador de quebra-cabeças.
Para mim, o que mais me empacou foram as salas que misturaram o combate com os quebra-cabeças. Impaciente que sou, fui vítima da execução um pouco travada dos tiros de estilingue e precisando refazer muitas vezes alguns momentos de combate. Também não ajuda muito o fato de eu não ser muuito bom em bullet hell, culpa de muita ansiedade e pouca paciência.
Um dos momentos mais divertidos e despretensiosos do jogo acontece na pequena cidade, quando precisamos realizar algumas tarefas interligadas para ajudar os moradores da Vila e conseguir a informação que precisamos. Nesse ponto lidamos com minigames de precisão e velocidade, catando frutas e eventualmente presenciando um término de relacionamento novelesco.
Mas o principal são a trilha e as mensagens de Língua. Enquanto o baião e forró retrôs embalam o tema da Fulô e do jogo, as dungeons têm aquele ar clássico de RPGs antigos, além de podermos ouvir um sambinha e um arrocha durante as aventuras na cidade.
Já na mensagem, além de reencontrar a voz de Beto e do espírito Bumbá, o jogo aborda a relação da humanidade com a natureza e os animais e a amizade envolvendo o garoto e Fulô, a protetora da mata.
Língua é um jogo extremamente fofo e cuidadoso, com uma pixel art lindinha e fases bem desenhadas. A trilha é o ponto mais alto, com as salas de quebra-cabeças logo atrás e equilibrando a frustração pelo combate um pouco lento. Uma ótima aventura e uma excelente estreia para Guilherme e o restante dos desenvolvedores.
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