O cenário a seguir acontece com certa frequência no meu cotidiano:
estou, casualmente, conversando com alguém quando sou indagado sobre qual é exatamente minha ocupação profissional. Então respondo:
"Bem, eu faço jogos. Jogos digitais, sabe? Video game. E também dou aulas sobre desenvolvimento de jogos."
O que vem em seguida é um segundo de silêncio confuso e um olhar de certa incredulidade como se eu tivesse dito que sou tradutor de manuscritos sumérios. Logo depois do olhar vem um elogio meio exagerado e as vezes sem graça com um tom do tipo:
"Uau! Que legal, hein? Tipo Mario, né?"
Até esse ponto, tudo normal, ainda há muito desconhecimento sobre nossa área e, eu mesmo, ainda fico muito surpreso com o fato de sobreviver fazendo joguinhos, é um pequeno milagre mensal que eu consiga pagar meu aluguel. O que me faz escrever sobre esse assunto, é a frase que, às vezes, surge no fim dessa conversa:
"Nossa! Eu tenho um filho (sobrinho/irmão/criança de parentesco indefinido) e ele é louco por vÃdeo games, ele tem um Playstation 5/Nintendo Switch e fica o dia inteiro jogando... Você deveria ir lá ensinar ele à fazer jogos, ele iria adorar!"
Confesso que ainda tenho um pouco de dificuldade de lidar com essa situação, me gera uma série de sentimentos conflitantes, entendo que existe uma admiração genuÃna, mas também fica implÃcita essa percepção de que o "fazer jogos" não é uma atividade séria.
Dependendo do interlocutor, esse contexto ganha camadas um tanto mais incômodas. Um par de vezes já recebi propostas para ir dar aulas particulares à domicÃlio, uma das pessoas inclusive me garantiu que teria "toda a estrutura necessária" e que na casa haveriam "2 (duas) cadeiras gamers disponÃveis". Sim, a branquitude se passa um pouco.
Geralmente, acabo essa conversa acenando com a cabeça positivamente antes de recomendar que a pessoa matricule a criança em alguma formação disponÃvel, se possÃvel, na que estou atuando no momento. Mas, aqui, vim escrever qual seria minha resposta totalmente sincera:
"Não, sua criança não quer desenvolver jogos, ela quer jogar. Deixe ela jogar. Não coloque ela em nada parecido com um curso de desenvolvimento de jogos, por favor!"
Mas a questão aqui vai muito além do mero desconhecimento sobre o mercado de desenvolvimento de jogos e também não quero culpar os pais que, munidos de boas intenções, desejam que os filhos tenham acesso a tal conhecimento.
E, antes de mais nada, gostaria de deixar isso posto: Sim você pode colocar suas crianças em cursos de jogos. Isso não é algo com o que eu vá me importar. É uma escolha sua, espero que seja uma escolha da criança também.
Agora, partindo para o aprofundamento do problema que esse texto pretende abordar, um problema que, como a maioria dos problemas que enfrentamos na contemporaneidade, é estrutural: Existe uma camada de desinformação e ideologia neoliberal muito difundida na mÃdia hegemônica sobre o assunto:

Essa fábula moderna da "profissão do futuro", sobre as carreiras empoderadas do ramo da TI, do mercado de jogos digitais que são uma catarata de dinheiro jorrando de uma fonte infindável de recursos, não passa de uma história contada diversas vezes, matéria após matéria.
Sim, o dinheiro existe, a indústria bilionária existe, mas ela não foi feita para que os trabalhadores usufruam desses recursos. Indo além, nada disso está disponÃvel para os trabalhadores brasileiros. E claro, existem as exceções. Existem os filhos da classe alta, que vão estudar nas melhores escolas particulares, vão estudar robótica, programação, inglês, artes, filosofia, literatura, enfim, terão acesso as melhores oportunidades.
E, para vocês, pais dessas crianças privilegiadas, vão com tudo, incentivem seus filhos ainda na pré-adolescência a fazerem dezenas de cursos na área de jogos, eles precisam ser os melhores, mas com certeza eles terão a oportunidade de disputar vagas com profissionais do sudeste asiático nas maiores empresas de jogos do mundo, de trabalhar em "jornadas não convencionais" de várias horas a fio, de repetir tarefas em equipes multidisciplinares cujo o objetivo à longo prazo é pouco claro e, com sorte atingir o topo da hierarquia daqueles que passarão por processos de demissões coletivas e deixarão de gostar de videogames para sempre. Bom, digamos que é melhor do que forçar a criança a ser médica ou advogada, como a geração de seus pais fizeram.
Sei que a abordagem pode parecer um tanto hostil, mas não existe forma de amenizar as questões de crunch na indústria de games, bem como os layoffs que explodem em números cada vez maior de extinção de postos de trabalho tanto no mercado internacional, quanto nas empresas brasileiras.
As questões acima, não sendo suficiente para demovê-los de empurrar suas crianças para essa carreira tão ingrata, devo lembrar que elas podem fazer parte de grupos de minorias representativas e não há nada que a comunidade gamer odeie mais do que minorias representativas.
Isso faz parte da cultura dessa comunidade e esse ódio também está inserido nas altas cadeias de comando e organização da indústria e mÃdia de jogos.

Uau! Você poderia ensinar os nossos alunos à fazer videogames?
Que esse tipo de abordagem se dê entre o público geral, seria esperado mas, a partir da difusão dessa ideia de que os videogames são uma fonte de dinheiro infinito, as instituições de ensino também passaram a ter a demanda de oferecer cursos de jogos digitais. Essa decisão não vem sozinha e também está permeada de ideologia, em uma realidade onde a educação bancária triunfou e as escolas ensinam empreendedorismo, marketing digital e vendas.
Então partimos para uma outra problemática: os gestores, coordenadores, diretores e autoridades responsáveis pela implementação desses cursos e atividades não buscam entender como são os processos de aprendizado que envolvem jogos, não diferenciam os métodos pedagógicos que utilizam de jogos digitais ou de mesa, o ensino de desenvolvimento de jogos em si e, em casos mais extremos, a famigerada gamificação. Querem uma formação que envolva tudo junto e ao mesmo tempo e, que no final, a turma tenha produzido um jogo com gráficos 3D.
Porém, no meio do caminho, a realidade se sobrepõe: Como ensinar jogos digitais sem computadores para todos os alunos? Como criar repertório para esses jovens sem acesso a consoles de videogame no espaço? Como testar os jogos sem joysticks? Como criar música para jogos sem controladores MIDI? Como ensinar arte digital sem um tablet para desenhos? Como ensinar game design, ludologia e narrativa para jogos sem o material literário necessário para tal? Eu nem citei licença de nenhum software até aqui...
Vejam bem, é possÃvel ensinar jogos digitais sem todas essas coisas. Muitas vezes, eu o fiz. A grande questão, com as pessoas que gerem a educação é: essas pessoas sequer pararam para pensar sobre esses aspectos.
A esses gestores, eu poderia elaborar mais sobre o quanto é difÃcil "cometer" um joguinho digital, mas vou recomendar um excelente texto do Victor de Paiva que, na data dessa publicação, já deve estar disponÃvel, aqui mesmo no Controles Voadores, sobre como construir um Navio-Patrulha. Controlesception!
E por que eu dou aulas se acho que suas crianças não deveriam estudar desenvolvimento de jogos?

Para mim, jogos nunca foram um meio de atingir um objetivo financeiro. Ter acesso à um console de videogame, nunca foi uma realidade na minha infância. As portas do mercado de desenvolvimento de jogos digitais nunca estiveram abertas. Em certa medida, eu ainda sou aquela criança que sonhava em fazer jogos, uma criança preta e periférica.
"Sobreviver no inferno, a obsessão é a alternativa."
Sabotagem, um bom lugar.
É nesse campo que eu atuo, a periferia TEM QUE FAZER JOGOS! Não tenho escolha a não ser ensinar as crianças e jovens da periferia a fazer jogos. As crianças que não terão acesso à s melhores escolas, as crianças que não terão aula de robótica, as crianças que não terão acesso aos meios tecnológicos, consoles, computadores, que não terão uma vaga nas faculdades de jogos, que mesmo com talento nas artes não serão contratadas para ser freelance em uma empresa gringa porque não tem o inglês fluente, as crianças periféricas que não acessarão os eventos milionários cujo os ingressos custam um salário mÃnimo e meio.... Enfim, é essa realidade que eu trabalho para mudar.
Vivemos em um mundo que passa por uma rápida transformação e em que as crises do capitalismo se intensificam. Se já não havia paridade de condições e acesso à tecnologia, a tendência é que a desigualdade se acentue. No nosso paÃs a construção da cultura digital, assim como a arte, é anacrônica. Nunca acreditei na construção de um mercado de jogos nacionais que apenas replique as temáticas do que é feito no Norte, que repita as mesmas contradições e vÃcios das estruturas organizacionais dessa indústria decadente, que tente recriar um ecossistema disfuncional de projetos natimortos.
Para finalizar, meu objetivo é criar condições para que as crianças periféricas joguem e desenvolvam suas próprias subjetividades e, se quiserem, tenha a possibilidade de criar jogos, mas jogos que falem sobre suas próprias questões, que expressem a sua própria estética que, como conceitua Yuk Hui em seu livro (na verdade um conjunto de ensaios) Tecnodiversidade, de 2020, exerçam as cosmotécnicas presentes em seu território e em sua cultura.
Então me desculpem, não posso ensinar suas crianças a fazer jogos, estou ocupado trabalhando com a periferia.
Referências: