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Quantas horas você joga?

Rafael Braga

Há quanto tempo você não tem mais tempo pra sentar e jogar videogame sem se preocupar com o tempo?

Que horas você acordou?
Quantas horas trabalha?
Quantas horas anda por dia?
Qual sua idade?
Que horas vai dormir?
Você vai ao cinema?
O que você faz no fim de semana?
Que horas você janta?

O impactante monólogo interpretado de forma primorosa por Calunga (Antônio Pitanga) na cena inicial do filme de 1966 “A Grande Cidade” dirigido por Cacá Diegues tem marcado presença no imaginário digital do brasileiro no começo de 2025.


Bom, pelo menos nas redes sociais que possuem vídeos curtos, semanalmente me deparo com essa cena sendo repostada, às vezes a cena original, outras vezes, com uma trilha sonora modificada para (quem sabe?) acrescentar mais “dramaticidade” ou um tom “motivacional” (como se o fervor quase religioso na voz de Calunga, já não o bastasse) e, não duvido, deve haver alguma versão de adolescentes dançando enquanto o áudio é reproduzido ao fundo. 


E, olha só, esse texto não existe para fazer juízo de valor, acho legítimo a identificação que o filme causa em 2025, afinal, estamos falando  de uma obra que vem ao mundo dois anos após o golpe militar de 1964 no Brasil e no auge da Guerra Fria marcado pela polarização entre os Estados Unidos e a União Soviética. Estão sentindo uma identificação aí? Pois é!


Um segundo adendo: Eu não sou exatamente um cinéfilo ou um crítico de cinema, pelo contrário, sou apenas um apreciador da sétima arte que não consegue mais parar por três horas para assistir um filme, imobilizado pelas garras da economia da atenção. E não se esqueçam que, neste portal, estamos entre desenvolvedores de joguinhos, mal temos tempo para jogar.


Isso posto, essas reflexões haviam rapidamente transitado no departamento de geração de textos dos meus divertidamentes quando comentei sobre a ideia com Lucas Toso, redator desse portal. Então algo aconteceu:

Conversa no aplicativo whatsapp - Rafael: É o "video game novo, não tem jeito (risadas) Lucas: Forte. (Imagem do ator Antônio Pitanga como Calunga) Rafael: Deixa só a TV dar a verba pra eles verem (risos). 14 de fevereiro de 2025.Lucas: Mano, tu mandou isso ontem, hoje o Cacá Diegues morreu. Rafael: Emoji de espanto
Me desculpem pelo linguajar.

Para aqueles que já tenham assistido ao filme, talvez já seja possível presumir que minha expectativa seria subvertida. O filme é extraordinário, moderno, a narrativa é dinâmica, os enquadramentos são lindos, todas as limitações técnicas da época somente acrescentam uma nova camada de beleza à película. O contraste entre o preto e o branco, o bem e o mal, a vida e a morte.


Enfim, vou me podar de fazer uma análise crítica, não é essa minha intenção aqui, mas estou muito feliz de ter tomado a decisão de desacelerar e assistir um filme rodado à seis décadas e que continua relevante. É aquela sensação de um momento que não poderei experimentar novamente, de ter assistido um filme clássico pela primeira vez.


E os video-joguinhos, o que tem a ver com isso?


Então, com toda essa introdução gigantesca, o que nos resta é falar dos vídeo games. E é exatamente essa experiência, de sentar, tomar seu tempo e apreciar um produto audiovisual que me trouxe o questionamento: Quantas horas você joga? E iria além: A que horas você joga?


Voltando no monólogo de Calunga, em 1966:


Uma pessoa comum acorda todo dia às seis e meia da manhã, toma café e sai para o trabalho às sete.
Chega à cidade e trabalha até o meio dia. Almoça e volta às duas para o serviço, de onde sai às seis da tarde.
Toma a condução de volta e chega em casa para jantar.
Por volta das onze horas, vai dormir [...]

Aqui podemos perceber que, de 1966 para cá, as contradições do capitalismo se exacerbaram, se intensificaram. Se acordávamos as seis, talvez para atravessar a distância entre os guetos e a cidade, a maioria de nós tenhamos que acordar às cinco, às quatro horas nos dias atuais. Se esse trajeto durava uma hora naquele tempo, talvez hoje beire às três horas na condução lotada que, muitas vezes, cheg atrasada por conta de um incêndio em um dos carros, um alagamento nos trilhos ou qualquer consequência relacionada ao sucateamento incentivado por práticas privatistas e neoliberais.


E se por volta das onze horas, as pessoas iam dormir, repito a pergunta, à que horas você vai dormir? Com cansaço, com exaustão, depois de trabalhar, de rolar infinitamente o feed, de tentar produzir algo fora da vida no trabalho, de colocar aquela série em dia, de jogar video game.


E quando falamos de video games, estamos falando de uma mídia que trás obras com duração de oitenta, noventa, cem horas de conteúdo. E, por diversos motivos, a indústria vem puxando esse limite mais e mais para atender uma demanda imaginária, afinal, se o jogo dura pouco é sinal de que o jogo é ruim, poderia dizer o "gamer hipotético". De novo: Quantas horas você joga?


Em meados de 2020, o ano da pandemia, ouvi pela primeira vez ser mencionada uma pesquisa científica que relatava o fenômeno da "Vingança e procrastinação da hora de dormir" e logo depois vários portais jornalísticos reproduziram a matéria da BBC que destacava que isso era algo que estava acontecendo particularmente com os jovens chineses. Porque, enfim, a China é o único lugar no mundo que possui longas jornadas de trabalho. Mas spoiler: hoje, conseguimos perceber que isso é um fenômeno global.

Página do Portal BBC Brasil: O que é a 'vingança da hora de dormir' dos jovens que  trabalham demais na China
Reprodução: BBC News Brasil
A procrastinação de vingança na hora de dormir acontece quando alguém, intencionalmente, fica acordado até muito tarde para conferir as redes sociais, assistir televisão ou praticar qualquer outra atividade a qual não se teve tempo durante o dia. “É uma descrição de quando as pessoas não têm tanto controle sobre sua rotina e vida diurna, e atrasam o sono e a hora de dormir para ter mais liberdade e tempo livre. Elas fazem isso cientes de que sofrerão consequências negativas”, explica Michelle Drerup, diretora do programa médico de comportamento do sono na Clínica de Distúrbios do Sono de Cleveland, Estados Unidos, ao “Yahoo Life”, de onde são as informações.


Sim, mas e os videogames com isso?


Para elaborar um pouco mais esse ponto gostaria de citar uma das melhores séries de divulgação científica já produzidas na televisão, escrita e apresentada pelo brilhante astrônomo Carl Sagan. “Cosmos: Uma Viagem Pessoal” de 1980.


No décimo primeiro episódio de Cosmos "A Persistência da Memória", Sagan nos apresenta uma intrigante reflexão enquanto visita a Biblioteca de Nova York, uma das maiores no mundo:


As grandes bibliotecas do mundo contêm milhões de volumes, o equivalente a cerca de 10 elevado à décima quarta potência de bits de informação em palavras, e talvez 10 elevado à décima quinta potência de bits em imagens.
Isso é 10 mil vezes mais informação do que a contida em nossos genes. Se ler um livro completo por semana, terei lido no fim da vida uns poucos milhares de livros, um décimo de 1% do que contêm as grandes bibliotecas de nossa época.
O truque é saber quais livros ler.
O Astrônomo Carl Sagan vestindo um terno marrom gravata vermelha e calça preta, descendo pelas escadas da biblioteca de Nova York com  uma estante de livros ao fundo. Cena retirada da Série cosmos. Na legenda, se lê em espanhol: El truco es saber qué libros hay que leer.

Quantos jogos de videogames existem?


Traduzindo um pouco esse conceito que Sagan nos apresenta para os jogos digitais, fiz uma rápida pesquisa, para que possamos (bem por cima) ter uma ideia da quantidade de jogos disponíveis por aí, levando em consideração os consoles portáteis, de mesa e jogos disponíveis na plataforma Steam:


  • Master System - 312 jogos

  • Nintendo 64 - 393 jogos

  • Dreamcast - 624 jogos

  • GameCube - 653 jogos

  • NES - 706 jogos

  • Wii U - 783 jogos

  • Mega Drive - 878 jogos

  • Xbox - 997 jogos

  • Saturn - 1047 jogos

  • PSP - 1914 jogos

  • PS Vita - 2198 jogos

  • Nintendo 3DS - 1349 jogos

  • Game Boy Advance - 1498 jogos

  • Wii - 1597 jogos

  • Super Nintendo - 1756 jogos

  • Nintendo DS - 2030 jogos

  • Xbox 360 - 2154 jogos

  • PlayStation 3 - 2278 jogos

  • Xbox One - 2708 jogos

  • PlayStation 4 - 3163 jogos

  • PlayStation 1 - 4106 jogos

  • PlayStation 2 - 4380 jogos

  • Steam - 30.000 jogos



Com tantas opções disponíveis (na soma do levantamento arbitrário acima, por volta de 67.000 jogos), Porque você está terceirizando a escolha de qual jogo você vai jogar, para uma plataforma online? Porque você está terceirizando a escolha dos jogos que não vai jogar para um punhado de gamers raivosos escrevendo em caixa alta nas seções de análise dessas mesmas plataformas? Porque mesmo é que você está terceirizando a escolha de qual conteúdo você vai "scrollar" infinitamente para um algoritmo qualquer?


O QUE ESTÃO FAZENDO NO CINEMA?

Calunga (Antônio Pitanga) encara a câmera. Ao fundo um cinema. Em cartaz, o filme O Escudo Negro de Falworth

No fim, acredito que o que me moveu a escrever essa coluna hoje, pode ser resumido em: Jogue os jogos que você quer jogar, sejam retrô, sejam lançamentos, mas desde que você queira jogar. Quer ele tenha sido super recomendado e exista um "hype" gigantesco sobre ele, quer tenha sido escrachado pelo crítica especializada.


Mesmo que você não conheça e seja um jogo obscuro de 1988 lançado para Master System (Obrigado, Air Rescue), o importante é estar presente e se divertir, compartilhar esse momento com quem estiver do seu lado, apenas não esteja ali batendo o ponto de horas jogadas. Sua saúde mental agradece!


Referências:


Magalhães, P., Cruz, V., Teixeira, S., Fuentes, S., & Rosário, P. (2020). An exploratory study on sleep procrastination: Bedtime vs. while-in-bed procrastination. International Journal of Environmental Research and Public Health, 17(16), 5892.https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/32823762/


Liang, L.-H. (2020, November 26). The psychology behind “revenge bedtime procrastination.” BBC., Retrieved February 17, 2021, fromhttps://www.bbc.com/worklife/article/20201123-the-psychology-behind-revenge-bedtime-procrastination


Sleep Corner: Revenge Bedtime Procrastination

Stanford Student Affairs Written by: Michaela Phan, Class of 2023

2 Comments


@rda9000
há 7 dias

O tédio morreu, mas passa bem. Como ficar entediado com tanta oferta de entretenimento e distração? De filmes, séries, animações, música e redes sociais. E joguinhos. O medo de ficar de fora, de perder algo, das novidades ou das retro-novidades. Outro dia assisti, pela primeira vez, Metropolis, filme de 1927, marco da ficção científica e do expressionismo alemão. Aos 54 anos tive aquela sensação de ver um clássico pela primeira vez. Outro dia, cansado de levar a Aloy, do Forbidden West, pra cima e pra baixo naquele mapa, entrei num site atari2600 e joguei Demon Attack. Joguei o joguinho que eu jogava na minha infância, agora em um navegador. Passei uns 30 minutos jogando e terminei com uma sensação boa, não de que…

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Rafael Braga
Rafael Braga
há 6 dias
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Exatamente! As melhores experiências, para mim, são sempre essas, de escolher algo que os algoritmos não me entregariam, algum conteúdo que não vou ter com quem comentar no dia seguinte no trabalho, mas que é exatamente o que eu queria naquele momento. Foi assim que assisti o Encouraçado Potemkin, Solaris, 2001 uma odisséia no Espaço, alguns de meus filmes favoritos, foi assim que descobri os jogos do MSX e PC Engine, e foi assim, também, que ouvi algumas boas bandas se hardcore das Filipinas.

Eu fico com a desconfortável sensação de que as próximas gerações não vão ter tanta facilidade para entender o quanto essa disponibilidade de opções é incrível, sem contar que também existe essa questão do acesso e…


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