top of page

De Jogos Artesanais

Victor de Paiva

Atualizado: 13 de fev.

OU O Hobby, a Profissão, e a Engenharia Naval


Dois amigos de longa data conversam em uma mesa de bar. É quinta-feira à noite, o céu está parcialmente nublado, o som do estabelecimento toca Borbulhas de Amor do Fagner.


Eles dois têm trabalhado bastante nos últimos dias/meses/anos. O papo vai, como sempre, para a relembrança de momentos mais simples, quando tinham tempo livre para se saciarem em suas Atividades Terceiras – aquelas que não eram nem de obrigação (estudo ou trabalho) e nem de fisiologia (comer, dormir).


Nossos amigos –  já estamos íntimos o bastante para os chamarmos assim. Eles são pessoas doces e com certeza puxariam uma cadeira para nos sentarmos e dividirmos o próximo litrão – são também pessoas com uma inclinação para atividades criativas. Costumavam não odiar com todas as suas forças a confecção de cartazes em papel 40 Kg para a aula de Ciências, e hoje em dia passam mais tempo do que deveriam embelezando planilhas de controle de inventário.


Por conta disso, nossos queridos amigos sempre estão em busca de novos hobbies. Já testaram a água com instrumentos musicais, artes marciais, desenho, teve aquela vez que treinaram para uma meia-maratona, se lembra? E agora estão, ébrios na noite de véspera de um dia normal de expediente, discutindo sobre qual será sua próxima escapada.


O primeiro amigo está animado pelo seu novo kit de biscuit que comprou impulsivamente pelo Mercado Livre. Já estudou bastante (viu vídeos no TikTok, que acabaram o levando a ver vídeos mais longos e mais horizontais no YouTube) e está com algumas ideias de projeto na cabeça.


O segundo amigo comunica sua intenção de construir um navio-patrulha totalmente funcional, inspirado nos que ele vê atracados na zona da Marinha perto de sua casa. Ele vem estudando e já tem um plano sólido de como


  1. executar o design do casco,

  2. realizar cálculos e simulações de estabilidade e eficiência,

  3. obter aprovação desses planos com as autoridades regulatórias,

  4. encomendar duzentas e cinquenta toneladas de aço naval e outras ligas - além dos motores, sistemas de radar, armamentos, equipamentos de comunicação e eletrônicos diversos;

  5. Está com uns vídeos salvos pra ver mais tarde sobre a parte de corte e molde das placas (tem algumas dúvidas sobre essa parte)

  6. e talvez esteja até disposto a pedir ajuda para um outro amigo na parte de montar a quilha, proa e popa.

  7. Se garante nas soldagens e nos testes de pressão –

  8. – e aí começa a parte legal da construção da superestrutura, 

  9. e aí levando em conta a instalação de todos os equipamentos, armamentos e sistema de defesa,

  10. mais os acabamentos e revestimentos e testes de mar,


e pode ser que aí, em uns 36 meses estourando, esteja pronto para os


  1. testes de mar,


e, com sorte, pode ser comissionado.


Foto do Navio Patrulha Araguari, na Marinha do Brasil, nas águas de Fernando de Noronha. Ao fundo dá pra ver a silhueta da Ilha e nuvens brancas em um céu azul.

Quem sabe até rivaliza com o Araguari.

Foto mais próxima do Navio Patrulha Araguari, ainda em Fernando de Noronha. O mar está um azul profundo e bonito, e há também um speedboat navegando próximo à embarcação.

É um plano infalível – ele já viu diversas propagandas no Instagram de outros que fizeram o mesmo e agora estão ricos. Por sorte, estas pessoas, mesmo ricas, tiveram a bondade de montar cursos ensinando um ninguém como nosso amigo Bruno De Luca a como fazer o mesmo.


Nosso grande amigo A (de Abílio, lembrando) então pergunta de forma tola e ingênua: “Não sei. Parece muito trabalho, não é? Você já trabalhou com engenharia naval antes?”


Nosso maior amigo B retruca: “Eu sei que é difícil. Mas você tem que lembrar que o Eric Barone fez a mesma coisa e ficou milionário.”


O que você diria para nosso enorme amigo B?


a) Você está equivocado. Eric Barone não é engenheiro naval, é o famoso criador do influente jogo Stardew Valley (2016).

b) Aqui amigo, te trouxe uma água. Essa é a saideira, tá?

c) Mas vocês não estavam falando de hobbies? Por que a sua motivação é ganhar dinheiro?


Após perceber que a) e b) não são respostas de verdade para o exercício proposto e escolher c), ele responde: “Verdade. Não tinha pensado nisso. Mas de que vale fazer um jogo se ninguém jogar? O sucesso não é um indicativo de que estou fazendo algo certo?”


Você aponta para nosso imenso amigo que ele deslizou na metáfora e estragou o twist. Uma luz surge do céu e lhe arrebata de volta para a frente da tela em que você lê o portal do Controles Voadores. E você me afirma: “Olha, sinto que o Amigo B tinha um ponto válido ali na última coisa que disse”.


Primeiro de tudo: quem está escrevendo o post sou eu. Aguarde sua vez. Em segundo lugar: Quase! 


Do joguinismo


A arte de confecção de jogos, o joguinismo, é caso de CAPS. É um sarapatel das outras Artes “predecessoras”.


E diferente do cinema, música, artes plásticas – em que você atende o doce canto das musas e/ou o grito estridente dos goblins que infestam as fissuras mais profundas da sua mente divergente, utilizando sua linguagem escolhida, e conta com a capacidade do ser humano à sua frente de imbuir aquilo de significado;


Aqui e agora, com os jogos™, você puxa para si a necessidade de ser capaz de fazer isso, em três ou quatro linguagens diferentes e simultâneas + apertar seu terceiro olho para prever em certo grau o que o Jogador vai pensar, fazer, tocar, sentir, olhar, lembrar, conectar – e garantir que ele caia, idealmente, em um cenário que gere uma boa experiência. Ou uma experiência interessante. Honestamente, se gerar “uma experiência” estamos no lucro.


Confeccionar jogos é confeccionar experiências. Confeccionar pensamentos, sentimentos, emoções, reações, aprendizados. É saber que cada jogador vai ter uma relação Própria e Única com o objeto experimental, e é estar em paz com isso e dormir tranquilamente à noite sabendo que as suas decisões geraram frustração, raiva e nojo em seres humanos tão multifacetados quanto você.


É, ao mesmo tempo, uma expressão de alto grau de complexidade e abstração – dispor da maioria dos sentidos, ao mesmo tempo, e coordenar como eles trabalham em uníssono – e o mais direto design de “experiência” crua. Fazer uma “coisa”. Uma “atividade”.


É colocar na sua frente uma bola vermelha, duas bolas azuis, e dois copos verdes. E uma regra – quem errar é o Splork no próximo turno. E chamar isso de um Jogo. E cobrar 4.99 USD seguindo as faixas de preço sugeridas pela Steam (adaptado para 9.90 BRL para fazer uma semelhança de paridade com o poder de compra do nosso povo). E eu torço para que você tenha assistido o Derek Yu sobre como fazer um bom trailer. E por favor, invista em alguém pra fazer uma arte de cápsula linda, daquelas que uma IA generativa colocaria a label de Trending on Artstation se visse – mesmo que o estilo não tenha nada a ver com o estilo do seu jogo. Pode comissionar pelo Fiverr, o pessoal da Índia e da Europa Oriental trabalha a preços baixos. Desfrute do capitalismo tardio! Explore mão de obra precarizada sem escrúpulos!


Alternativamente, você pode fazer o que está a fim de fazer. Mas, diferente de um projeto de crochê ou de pintura de aquarela, você talvez leve um ano e meio para perceber que não está nem próximo de chegar na metade do que você (achava que) queria fazer. Você agora nutre sentimentos não-bíblicos por computação, a menos exata de todas as ciências exatas. Mas! Você ouviu falar de umas tais “publishers”, que são como editoras de livros. Algumas até dão dinheiro pra você. E você se esforça para–


Calma. Essa alternativa era pra ser o cenário hipotético em que fazemos o que estamos a fim, sem pensar no dinheiro. Por Amor.


Certo, porque você Ama jogos. Você Ama quando a Unity tem uma queda logarítmica de performance porque você importou texturas com resoluções que não são potência de dois. Você Ama integrar uma indústria que “só cresce!” (olhe todos os bilhões de dólares ao seu redor). Você Ama que mesmo não parando de crescer, não há emprego. Quando há emprego, se recebe muito, mas muito pouquinho. Tem os que pagam ligeiramente melhor, claro – só estar disposto a ir pro mercado mobile. Ou, no mínimo do mínimo, trabalhar em um projeto que você não tem tanto apego assim. Nós não cogitaremos Web3/NFT nem para fins de exercício mental.


Opa, aconteceu de novo – o hobby virou trabalho e a gente nem se deu conta. Por que isso acontece? Por que temos essa vontade louca de profissionalizar a nossa arte? O neoliberalismo venceu? Hora de comprar camiseta do Milei com motosserra? Afuera?


Mas, pausa: se você gosta muito de cozinhar, você sente que a única forma de continuar cozinhando é virar um chef Michelin cinco estrelas?


Se você gosta muito de fazer crochê, você precisa obrigatoriamente ir para as finais do Campeonato Mundial de Crochê? (entretive essa ideia e passei tempo demais pesquisando sobre enquanto escrevia).


Provavelmente não. O mais comum é que façamos estas coisas para nós, e, quanto sentimos um pouco mais de confiança, para presentear aqueles que amamos. Fazer um gorrinho para o sobrinho da Marcela ou chamar uns amigos em casa para tomar um tacacá


A própria estrada de confeccionar jogos acaba por nos induzir à necessidade de profissionalização – algo precisa “justificar” o tremendo ralo de tempo e recursos que é levar um jogo do conceito à realidade. A quantidade de habilidades necessárias torna bem difícil que uma única pessoa sozinha consiga executar com maestria.


E muitos de nós, que querem fazer jogos, que sentem essa ânsia, esse comichão, essa pontada no lado esquerdo do peito quando faz uma respiração muito funda, essa dor que se espalha para o abdômen, costas e mandíbula, esse suor frio, essa visão turva etc. – Muitos de todos nós fazemos isso porque tem algo de inefável, algo de romântico, algo de inquietante entre sentir a satisfação de cumprir o objetivo hercúleo de sobreviver até o launch day, e o absoluto terror de não fazer ideia de como centenas de milhares de microdecisões conseguiram agir em sintonia para entregar a v1.0.4.b_fixed(Steamworks).exe.


E de ainda ter maluco que gosta dessa maçaroca. Alguns até que dão dinheiro por isso. Mas que pra você – que recheou esta salsicha – sempre será uma maçaroca. Você que sabe que para cada 50g da unidade de salsicha tiveram mais oito quilos de carne e tendões putrefatos guardados na pior das despensas: a sua cabeça.


E você sabe que continuarão lá, contaminando os cômodos e móveis do seu Palácio da Memória, até a hora que começarem a transbordar pelo ladrão. E aí, o pior aconteceu: você está fazendo o próximo jogo.


Do joguinismo artesanal


Para praticar o joguinismo, não precisa de licença, diploma ou duzentas e cinquenta toneladas de aço naval. Se você faz jogos, você é um joguinista. Queira você ou não.


Close de um daschund branco olhando diretamente para você. Ele sabe de algo.

Eu sei o que você é e não vou lhe deixar esquecer.


Você não precisa se profissionalizar para fazer, lançar; por mais que muitas vezes pareça ser o único caminho.


Se você já é profissionalizade – e possivelmente está a caminho de ou já chegou no ponto em que fazer os jogos deixou de necessariamente estar atrelado a uma satisfação pessoal – não se esqueça que você também é joguinista. Que você trilhou um caminho difícil, incerto, hipercoringante, com quase nenhuma ampara social ou econômica, e que muito possivelmente novas gerações de profissionais podem ter mais oportunidades porque você foi na frente abrindo caminho e cortando o mato alto. Mesmo que o mato seja muito alto e sempre cresça de novo, mágica e instantaneamente, logo atrás de você.


E se você está pensando sobre fazer jogos – como forma de expressão pessoal e criativa, e não necessariamente buscando uma inserção na PEA através dos jogos, aconselho: Elimine a motivação espúria de obter um semblante de lucro e abrace a iconoclastia inerente à confecção de jogos artesanais.


Do contrário, nós vamos ter cada vez menos artistas. E mais propagandas de cursos de como enriquecer rapidamente com jogos aparecendo no meu Instagram.


Por ora, brindemos ao nosso amigo Abílio. Que sua trilha pelos jogos traga satisfação pessoal dentro do humanamente possível. Bruno de Luca indica a Abílio o podcast Controles Voadores, para que ele tenha mais contato com outros desajustados como ele, e pede a saideira.


Veja também:



333 visualizações4 comentários

Posts recentes

Ver tudo

4 Comments


BrunoVieira
Feb 07

Cara, que texto incrível. Estou muito animado pra ver os próximos textos não só do Victor mas de todo o pessoal

Like
Victor de Paiva
Victor de Paiva
Feb 08
Replying to

Obrigado pelo apoio! Tamos juntos!

Like

Guest
Feb 07

Gostaria de dizer que acreditei o tempo inteiro que seu amigo, de fato, queria construir um navio de guerra, me pegou! Excelente texto, meu mano!

Like
Victor de Paiva
Victor de Paiva
Feb 08
Replying to

Valeu demais pelo carinho e por ter tirado um tempo por comentar!

Like
bottom of page